Foragidos da Noite (1950)

 

 

Título original – Night and the City

 

É um dos grandes Film Noir de sempre, com um fantástico elenco, um grande cineasta para o género e um dos mais perfeitos trabalhos do seu protagonista.

 

Harry Fabian é um dos maiores vigaristas de Londres. Sempre de lábia afiada, Harry move sempre um novo esquema para ganhar dinheiro e afirmar o seu nome no mundo nocturno.

O seu mais recente esquema visa organizar combates onde ele conta com a presença de uma lenda viva do meio.

Mas são muitas as adversidades e hostilidades.

Tal como o título indica, é uma crónica sobre a noite e a cidade.

É um conto sobre certos mundos underground (night clubs, combates de wrestling, esquemas de dinheiro fácil, pequenos criminosos), mas é, acima de tudo, um conto sobre um nobody a tentar ser somebody.

É um drama sobre essa luta pela afirmação, o desespero na tentativa daquela derradeira oportunidade, mas também da dor causada em quem se arrasta com tal.

“Night and the City” é todo um drama e tragédia humanos.

É um drama e tragédia de um homem, de um sonhador, manipulador e vigarista, e da sua vontade em ter um melhor amanhã.

É a tentativa de ascensão e total queda (precisamente por causa dessa tentativa) de um empreendedor, e que até à beira da morte consegue encontrar um plano infalível para ganhar dinheiro.

É um drama e tragédia sobre um conjunto de pessoas em busca da sua big break, que vêm tudo a desmoronar.

É uma visão de um mundo onde não há lugar para amizades e lealdades, nem para sonhos ou sucessos.

A par com tanto negrume, há uma dimensão de love story. E são três, mas todas falhadas – Adam é dedicado a Mary e está sempre presente quando ela precisa, mas Mary ainda acredita num amanhã melhor e numa redenção de Harry; é Phil e a sua dependência de Helen, quando esta só o usa para a obtenção do devido financiamento para o seu projecto.

“Night and the City” poderia ser um melodrama, daqueles dramalhões à Actor`s Studio.

Mas é um puro Film Noir.

E sendo este um género onde se aborda a podridão humana, a queda do vulgar dos mortais na desgraça, pecado e maldade, onde se analisa a corrupção humana, conseguindo-se uma certa “moralização” de condutas, não poderia haver melhor forma para encenar toda esta dimensão narrativa.

O filme ignora lei & ordem. Estamos numa cidade onde nenhum deles existe, a Polícia parece inexistente e inoperacional, sente-se uma ausência de boas pessoas (com excepção de Mary e Adam).

É passado em Londres, mas não é um british noir.

Todo o filme tem uma sensação, atmosfera e pulsar como se fosse um noir passado em L.A., Nova York ou Chicago.

O filme é todo um prodigioso exercício de fotografia, pela forma como se capta as luzes da cidade (seja em interiores ou em exteriores), as diversas nuances de luminosidade e sombras.

Estamos ainda nos anos 50 e já se vê um total shoot on location, antecipando tal recurso nos 60s e 70s.

Ou seja, o filme consegue ser avant garde.

A luta entre Gregorius e The Strangler é das mais brutais, bem executadas, encenadas e filmadas de sempre.

A morte de um personagem é um dos mais belos e emotivos momentos do Cinema, com uma forte presença de dor e sentimento.

Jules Dassin estava na blacklist de McCarthy, pelo que estava banido de Hollywood.

O filme não é uma total metáfora sobre tal situação, mas pode-se ver no terceiro acto (quando Harry percebe o sarilho em que está metido, vê-se perseguido e anda em fuga) como uma analogia sobre aqueles que foram marcados pelo McCarthyism – o apontar do dedo, o estar marcado, a solidão, a fuga, a ausência de ajuda e de quem ajude.

E por este aspecto, o filme também marca (muitos) pontos.

Jules Dassin bem percebia de noir.

Fosse feito nos USA (“The Naked City”) ou na Europa (“Du Rififi chez les Hommes”).

E ei-lo mais uma vez virtuoso para o género.

É a atenção aos detalhes da visualização da cidade e dos ambientes visitados, é a atenção aos rostos e a profundidade de campo deles face ao espaço, é a forma como usa a imagem para fazer noir, é pela direcção de actores e pelo que se consegue deles.

Todo o elenco é magnífico na sua prestação.

Richard Widmark tem aqui, muito seguramente, a sua melhor interpretação. O seu Harry Fabian é dos personagens mais mesquinhos, fracos, manipuladores, desprezíveis (a indiferença com que rouba o dinheiro a Mary perante o desespero dela), energéticos (a forma como comunica os seus sucessos e ideias), fascinantes e trágicos do Cinema. E Widmark consegue captar todos os medos (o final, onde Harry expõe toda a sua debilidade moral e emocional), fragilidades (os momentos com Mary), arrogância (a sua superioridade face a Kristo quando usa Gregorious) e energia do seu personagem (a forma como ele arranja esquemas, vigariza as suas vítimas). E ainda há o seu riso e gargalhada, que remete para a gargalhada sinistra do seu Tommy Udo em “Kiss of Death” (1947, o filme que revelou Widmark e o levou a concorrer a um Oscar), embora haja um inteligente contraste – a gargalhada de Harry é irónica e de triunfo desarmante sobre os “inimigos”, a gargalhada de Tommy indicia o mal a caminho.

Gene Tierney é sempre um miminho, sempre dedicada e delicada.

O restante elenco é absolutamente magnífico – atenção à manipuladora delicadeza de Googie Withers, à presença imponente de Francis L. Sullivan, ao ar letal de Herbert Lom, à comoção terminal de Stanislaus Zbyszko, à ira de Mike Mazurki.

Um poderoso Noir, que é, afinal, uma tragédia humana, e como tal, um dos grandes filmes do género.

Um verdadeiro Must no género e no Cinema.

O filme teve dois cuts – um para os USA e outro para UK.

O UK cut tem mais 5 minutos e várias diferenças (umas consideráveis, outras subtis).

O USA cut usa a música de Franz Waxman. Um magnífico score, bem dinâmico e stressante (que bem se sentem nos muitos momentos de fuga de Harry).

O UK cut usa música de Benjamin Frankel. É um score mais calmo, mais melancólico.

O USA cut tem um início onde se mostra Harry & Mary como um casal já quase em ruptura.

O UK cut um início diferente, mostrando que ainda há algo feliz entre Harry & Mary, mas com esta já algo cansada dos esquemas dele, procurando que ambos tenham uma vida normal.

O UK cut tem um primeiro encontro entre Phil e Helen (não há momento do casaco).

O UK cut não usa música na perseguição final a Harry.

O UK cut encurta a luta entre Gregorius e The Strangler.

Pelo meio há adendas e cortes em ambas as versões.

O final USA é mais seco, triste e irónico; o final UK, que ainda mantém muito do usado no USA cut, é um pouco mais esperançoso e feliz.

É difícil dizer qual o melhor cut.

Sim, o USA cut tem um muito melhor score (o de Waxman).

Mas as diferenças de algumas cenas dão nuances emocionais e de definição de personagens muito bem conseguidas.

É um caso para a escolha caber a cada um dos cinéfilos.

Contudo, sabe-se que a versão preferida de Jules Dassin é o USA cut.

 

“Night and the City” não tem edição no nosso país. Existe noutros, a bom preço. Procure-se a “Special Edition” ou a edição da “Criterion Collection” (mas há um preço) que tenha os dois Cuts.

Realizador: Jules Dassin

Argumentista(s): Jo Eisinger, Austin Dempster (sem crédito), William E. Watts (sem crédito), a partir do romance de Gerald Kersh (“Night and the City”)

Elenco: Richard Widmark, Gene Tierney, Googie Withers, Hugh Marlowe, Francis L. Sullivan, Herbert Lom, Stanislaus Zbyszko, Mike Mazurki

 

Trailer

 

O livro de Gerald Kersh foi um sucesso público e crítico.

 

Uma das primeiras reacções à primeira versão do argumento foi de Edmund Goulding, que via Cary Grant como protagonista. Goulding chegou a fazer muitas sugestões ao argumento.

George Cukor, Rouben Mamoulian, Mervyn Leroy e Robert Rossen também moveram interesse na realização.

Jules Dassin estava na “Lista Negra” da Comissão sobre as Actvidades Anti-Americanas e banido de Hollywood. Darryl F. Zanuck (o #1 da 20th Century Fox, o estúdio produtor do filme) disse-lhe que este poderia ser o último filme que o realizador teria oportunidade de fazer.

Rex Harrison, Douglas Fairbanks Jr., Robert Newton, Stewart Granger e Louis Jourdan foram considerados.

Rita Hayworth, Ida Lupino e Gene Tierney foram consideradas.

Gene Tierney participa no filme a pedido de Darryl F. Zanuck. A actriz estava a passar um delicado momento pessoal e o produtor quis ajudar. Tierney já tinha participado em vários filmes produzidos por Zanuck (“Laura”, “Leave Her to Heaven”, “Whirlpool”). A sua personagem foi criada de propósito.

Dassin não tinha lido o livro de Kersh antes das filmagens. Dassin só o leu depois de ter terminado o filme.

Há grandes diferenças entre os dois, pelo que o autor do livro ficou chateado com o filme.

Filmado em Londres e nos Estúdios Shepperton.

Dassin começou por filmar as cenas mais caras.

Richard Widmark perdeu imenso peso devido ao muito que teve de correr no filme.

No livro, Harry Fabian é um personagem menos simpático – é um chulo sobre a namorada e faz acções de chantagem.

O momento em que Harry deixa cair a flor e volta atrás para a recolher foi filmado, Zanuck pediu para o retirar e depois mudou de opinião.

O primeiro momento entre Harry e Mary teve mudanças exigidas por Zanuck. Essa cena é que fica no USA Cut.

O primeiro encontro entre Harry e Gregorius era mais longo.

Stanislaus Zbyszko e Mike Mazurki eram wrestlers antes de se tornarem actores. Ambos têm uma luta de wrestling.

A luta é mais longa no USA Cut e mais curta no UK Cut.

O personagem de Hugh Marlowe tem mais presença no UK Cut que no USA Cut.

Gene Tierney é dobrada no momento em que Mary canta no night club.

A presença de Gene Tierney é maior no UK Cut que no USA Cut.

O filme foi muito mal recebido pela crítica americana e britânica, por ser demasiado negro, triste, violento e sem esperança. A crítica inglesa achou que o filme dava um tão mau retrato de Londres, que considerou que o filme era um bom panfleto para se fazer turismo em Paris.

Segundo Jules Dassin, ele foi acusado de ter roubado ideias de “The Asphalt Jungle” (1950, de John Huston). Dassin só viu esse filme depois de ter filmado o seu. O filme de Huston teve a sua premiére um dia antes do de Dassin.

O UK Cut tem uma musica diferente e mudanças nalgumas cenas (o primeiro encontro entre Harry e Mary, a cena do casaco de peles de Helen, mais momentos entre Mary e Adam, a forma como Phil descobre a infidelidade de Helen com Harry, o final). Dura mais 5 minutos.

Jules Dassin considera o USA Cut como o mais próximo da sua visão para o filme.

O filme só começaria a ser devidamente (re)avaliado nos anos 60.

Em 2004, o filme foi alvo de preservação pela Academy Film Archive.

 

O filme teria um remake em 1992 (já aqui visto) – “Night and the City”, de Irwin Winkler, com Robert De Niro e Jessica Lange. Teve alguns elogios (principalmente a De Niro), mas foi um flop e (como é óbvio) foi considerado inferior ao filme de Jules Dassin.

 

One comment on “Foragidos da Noite (1950)

  1. […] and the City” (1950, já aqui visto) já era um must do Cinema e do Film […]

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