Título original – Saboteur
Alfred Hitchcock já estava a trabalhar nos USA, sob contrato com David O. Selznick (para quem tinha feito “Rebecca” em 1940, e faria mais três filmes – “Spellbound”, “Notorious” e “The Paradine Case”).
O Master of Suspense faz um “desvio” a esse contrato e volta a fazer um action suspense thriller pelos pergaminhos que tinha definido no género com “The 39 Steps” (1935, feito na Inglaterra).
80 anos depois, “Saboteur” continua um modelo para o género.
Barry Kane, um jovem operário de uma fábrica ligada à aeronáutica, é acusado (injustamente) de uma acção de sabotagem e de ter morto uma pessoa (que era amigo dele).
Kane percorre grande parte do país em fuga, na procura da verdade e descobre uma tenebrosa organização nazi americana.
Hitchcock faz O seu action suspense thriller, pelas regras que tinha definido em “The 39 Steps” (que no fundo são As regras do género, desde então até hoje, mostrando o quanto O Master of Suspense tinha razão e sabia o que fazia, confirmando mais uma vez o seu poder de visão sobre o Cinema).
É a história do falso culpado, acusado por um crime que não cometeu, em busca da verdade, metido em grandes alhadas e peripécias, em confronto com uma tenebrosa organização, mas contando com a ajuda (inicialmente céptica) de uma bela mulher.
Hitchcock recicla ideias narrativas de “The 39 Steps” (a forma como se incrimina o protagonista, o protagonista algemado em fuga com a menina, a perseguição, as peripécias, a fuga in extremis numa ponte e rio, a chegada a um lugar isolado, o vilão erudito, a descoberta do protagonista sobre o vilão na casa deste, a organização, o evento público onde se precisa criar uma diversão para fugir, o “discurso” do protagonista, o cepticismo da menina) e já prepara “North by Northwest” (feito em 1959, novamente com o protagonista a ser incriminado, o vilão sofisticado e letal, a descoberta dele na sua casa, a perseguição, as peripécias, a organização, a cena no deserto, o evento público onde se precisa criar uma diversão para fugir, o confronto final num relevante monumento dos USA, a punição pela queda).
Comum também nos três filmes é a viagem do protagonista pelo país (em “The 39 Steps” é entre Inglaterra e Escócia, em “Saboteur” e “North by Northwest” é pelos USA), bem como o ritmo non-stop.
Resultam interessantes as variantes face aos pontos cardeais – em “The 39 Steps” anda-se entre Norte e Sul, em “Saboteur” vamos de Sudoeste para Nordeste e em “North by Northwest” anda-se pelos pontos indicados no título.
Como sempre, Hitchcock vai directo ao assunto (os sarilhos começam ao fim de 3 minutos e pouco), sem complicações nem desnecessários desenvolvimentos.
Hitchcock permite-se, como sempre, ao humor – aqui (literalmente) pela infantilidade (é uma bebé que permite a Kane a descoberta da verdade e fugir).
Como sempre, Hitchcock não deixa de evidenciar um olhar sobre o mundo, por um lado com o prisma do humor (a vizinha coscuvilheira, o motorista que quer ver e viver algo dinâmico na sua vida), mas também com algo de crítico através do bizarro (é aquele cirque du freak que acredita em Kane e o ajuda, bem como muda a convicção de Pat), da pertinência (em tanta gente que vê a verdade sobre Kane, é um invisual que tudo vê e percebe sobre ele – uma cena belissimamente escrita e interpretada, que é todo um must de melodrama humano e humanista) e de uma profunda ironia (o vilão refinado, galante, elegante, bem-falante e bem isto na comunidade e autoridades locais; a organização sabotadora é cheia de membros da alta sociedade nova-iorquina), dando espaço a uma variedade de personagens que surgem sempre com algo de relevante e pitoresco (o camionista que quer acabar com o tédio na sua vida e consegue-o ao ajudar o protagonista, os membros do circo e a forma como vêem a situação do protagonista, o membro da organização que fala sobre os seus filhos, a madame milionária que tem na sua mansão um covil para a organização e é uma benfeitora).
Hitchcock também brinca com os laivos do destino, na relação entre o protagonista e quem o incriminou – o acaso (Kane encontra Fry de forma inesperada) e o seu paradoxo (é Kane que quer salvar Fry, é o inocente culpabilizado que quer salvar quem o tramou).
Como sempre nas obras do cineasta, e ainda mais neste género, não falta tensão (a forma como Kane quer esconder as algemas do tio e da sobrinha, o baile na casa rodeada de inimigos e a procura de saída), suspense (o serrar das algemas e a chegada dos carros na estrada, a luta em paralelo com a libertação do navio e a iminência de uma explosão, o cliffhanger final) e um morceau de bravoure (o salto da ponte, que antecipa um parecido feito por Harrison Ford em “The Fugitive” – um thriller com muito de Hitchcock).
Hitchcock volta a evidenciar o génio que é, através do (magnífico) planeamento visual – o (belo) plano incial, onde se evidencia onde se está (uma cantina), mas com o seu mistério (vêem-se soldados); o cerco sobre o par protagonista no baile; a luta para evitar a explosão; o desastre e e as reacções; o salvamento final (um prodigioso exercício de cliffhanging).
E há todo o seu saber em contar histórias e eventos, só pelas imagens (a boa herança da era do mudo), reforçado naquela atenção aos detalhes (de informação, gestos, objectos) que só Hitchcock sabia.
Hitchcock sempre gostou de matte paintings (a cena em Soda City, o final) e miniature effects, e eis tal uso a ser mais uma vez impecável.
Hitchcock até brinca com as realidades diversas – numa cena junta a realidade (a do filme) com um filme que se exibe numa sala de cinema (que tem uma situação semelhante à da “realidade”).
O filme surge em 1942. Já havia uma guerra na Europa, com os americanos a começarem a participar nela.
“Saboteur” faz o seu esforço na mobilização de mentalidades e acção combativa ao mal que assolava o mundo.
Por um lado, evidencia o vazio da nação americana face ao terror que se vivia na época – a faustosidade e indiferença das classes altas.
Mas não deixa de enaltecer o patriotismo americano – as conversas entre Kane e Tobin.
Contudo, deixa o seu alerta (que o futuro mostrou ser uma realidade nos USA) – a possibilidade do inimigo estar em solo americano e ser também americano.
Hitchcock praticamente que antecipa o que seria o “Caso Rosenberg” (americanos virados para a ideologia do inimigo) e quase dá uma justificação para o McCarthyism.
Robert Cummings é sempre simpático e stressado.
Priscilla Lane é fofinha.
Norman Lloyd tem pouco tempo de presença, mas consegue ser estranho, misterioso e perigoso.
Otto Kruger é perfeito como o típico vilão hitchcockiano (erudito, rico, sábio, culto, importante, poderoso, com sentido de humor e querido com a neta), até mesmo bondiano.
É Hitchcock em modo de entretenimento, em pleno domínio da linguagem cinematográfica, exímio no seu estilo, em grande no tipo de action suspense thriller que definiu.
É discutível se é uma das suas obras-primas, mas é, com toda a certeza, um dos seus melhores entretenimentos e que melhor ajuda a compreender a sua feitura do action suspense thriller.
“Saboteur” tem edição portuguesa, a bom preço.
Realizador: Alfred Hitchcock
Argumentistas: Peter Viertel, Joan Harrison, Dorothy Parker, Alfred Hitchcock (sem crédito)
Elenco: Robert Cummings, Priscilla Lane, Otto Kruger, Alan Baxter, Clem Bevans, Norman Lloyd, Alma Kruger, Vaughan Glaser
Trailer
Clips
Making of
Norman Lloyd sobre “Saboteur”
Alfred Hitchcock sobre “Saboteur”
Orçamento – 780.000 Dólares
Mercado doméstico – 1.250.000 milhões de Dólares
Hitchcock estava sob contrato com David O. Selznick e falou-lhe sobre a ideia. Selznick gostou e pôs John Houseman a supervisionar o projecto. Val Lewton era o story editor de Selznick e recusou o argumento. Assim sendo, Hitchcock procurou o interesse de outros estúdios.
A Universal aceita, mas Hitchcock não consegue os actores que queria –Gary Cooper (que não mostra interesse) e Barbara Stanwyck (que estava ocupada). Gary e Babs tinham-se encontrado em “Meet John Doe” (1941, de Frank Capra) e “Ball of Fire” (1941, de Howard Hawks).
Joel McCrea foi uma opção de Hitchcock. Ambos tinham trabalhado juntos em “Foreign Correspondent” (1940, feito também à margem do contrato com Selznick) e o actor queria repetir a experiência. Mas ele estava ocupado.
Hitchcock ponderou Henry Fonda como protagonista. Trabalhariam juntos em “The Wrong Man” (1956, ao lado de Vera Miles), o único filme do cineasta baseado num caso verídico.
Hitchcock queria Harry Carey como o líder dos vilões. A esposa de Carey ficou zangada com Hitchcock por este considerar o marido como vilão.
Hitchcock procurou Margaret Sullivan, perante a indisponibilidade de Barbara Stanwyck.
Evelyn Ankers era uma das stars da Universal Pictures, ao lado de Maria Montez e Deanna Durban. Ankers foi considerada. A Universal queria-a como rival a Fay Wray (star na RKO, por causa de “King Kong”, em 1933).
Selznick chegou a pensar em Gene Kelly como protagonista.
Robert Donat também foi ponderado por Hitchcock (tinham trabalhado juntos em “The 39 Steps”). Hitchcock já o tinha procurado várias vezes, mas o actor não queria estra ligado ao suspense thriller, pelo que recusava sempre.
Robert Cummings estava sob contrato com a Universal, Priscilla Lane vinha emprestada pela Warner Bros..
Lane só apareceu depois de terminar as filmagens de “Arsenic and Old Lace” (de Frank Capra, com Cary Grant; feito na época, mas só estreado em 1943).
Primeiro filme de Norman Lloyd. Ele e Hitchcock ficariam grandes amigos, com Loyd a ser chamado por Hitchcock como associate producer em “Alfred Hitchcock Presents” (1955-1962), bem como executive producer em “The Alfred Hitchcock Hour” (1962-1965).
John Houseman recomendou Lloyd a Hitchcock.
Primeiro filme de Laura Mason.
As gémeas Laura Mason (de nome real Jeanne Lynn Romer) e Jean Romer, interpretam gémeas neste filme e em “The Great Gatsby” (1949).
A prestigiada escritora Dorothy Parker (que seria alvo de um belo filme de Alan Rudolph, “Mrs. Parker and the Vicious Cricle”, em 1994) foi chamada para escrever algumas cenas (as dos diálogos patrióticos e as ce Barry Kane com Philip Martin).
Hitchcock chamou Peter Viertel para finalizar o argumento.
Filmagens nos arredores de Los Angeles e em Nova Iorque.
O plano do genérico foi filmado em estúdio, com painéis e um actor fora do enquadramento e devidamente iluminado para criar sombra nos painéis. A movimentação dele criava a ilusão do seu tamanho estar a aumentar através da sombra.
Otto Kruger foi o único actor a quem Hitchcock dedicou muito tempo a dirigir. Isto porque o actor não estava a convencer o cineasta como vilão.
O set para o rancho de Charles Tobin (Otto Kruger) seria reutilizado como a casa dos Brenners em “The Birds” (1963, também de Hitchcock).
Como é frequente em Hitchcock, bom recurso aos matte paintings – aqui nas cenas em Soda City e no confronto final na Estátua da Liberdade.
O efeito que se vê nos espectadores ao verem a sabotagem ao navio militar, foi com a câmara a ascender rapidamente e com uma montagem rápida.
A queda foi feita em estúdio e era a cãmara que se afastava do personagem e não ele que caía. A ilusão óptica faz o resto.
O filme requereu 4.500 set-ups de câmara, 49 sets e 1.200 extras.
Filmado em 15 semanas.
“Saboteur” rima com “The 39 Steps” (segue uma trama semelhante) e antecipa “North by Northwest” (1959; trama parecida, a cena no deserto, a cena no meio de uma sala cheia, a confrontação final num grande monumento americano, a punição pela queda), com este a parecer ser um “´Saboteur` mais luxuso de meios, elenco e técnica cinematográfica”.
O argumento tinha os alemães como vilões, mas Hitchcock decidiu que tal nunca fosse mencionado.
Ficou de fora uma cena que mostrava o par protagonista apanhado numa tempestado no deserto.
O livro que Charles Tobin sugere a Barry Kane, “Death of a Nobody”, existe. É de Jules Romains, editado em 1911.
O plano em que se vê o navio tombado é mesmo real. É o U.S.S. Normandie, que tombou devido a um incêndio (não foi um acto de sabotagem, apesar dos rumores na época).
O filme deveria terminar numa sala de cinema, com a exibição do filme da dupla Abbott & Costello, “Ride `em Cowboy”.
Inicialmente, Barry Kane ia-se chamar Barry Ford, Patricia Martin ia ser Teddie Miller, Philip Martin seria Edward Miller.
Fala-se que Robert Mitchum faz um cameo – é uma das pessoas a descer a escada, na Estátua da Liberdade.
Cameo de Hitchcock – é uma das pessoas ao lado do quiosque, em frente à drogaria, quando surge o carro dos sabotadores a levar Barry Kane.
Hitchcock filmou um cameo dele e Dorothy Parker, como um casal que vê os protagonistas a pedir boleia. O cineasta não utilizou essa footage.
O cameo inicial de Hitchcock foi recusado pela censura. Hitchcock ia interpretar um mudo que faz uma proposta a uma senhora (que seria interpretada pela secretária do cineasta) em linguagem gestual, ao que ela reage dando-lhe uma bofetada.
O filme foi marcado pela Marinha americana, pela forma como Hitchcock mostrava a facilidade com que se podia sabotar um navio militar americano.
O filme foi um flop nas bilheteiras.
É o primeiro filme onde o nome Alfred Hitchcock aparece antes do título do filme.
Considera-se como o primeiro filme de Hitchcock com um elenco totalmente americano.
“Saboteur” e “Shadow of a Doubt” (1943) são os únicos filmes que Hitchcock faz para a Universal Pictures nos 40s. Ambos falharam nas bilheteiras. O cineasta ficaria sob contrato no estúdio no final da sua carreira.
Hitchcock considerou que Priscilla Lane não era a actriz adequada ao filme dele.
Hitchcock considerou Robert Cummings como um actor capaz, mas mais para comédia, pelo que ficou algo insatisfeito com o seu trabalho no filme, sentindo que o actor não conseguiu criar um personagem que levasse os espectadores a preocuparem-se com ele.
Alfred Hitchcock e Robert Cummings reencontrar-se-iam em “Dial M for Murder” (1954).
Não é um dos filmes preferidos de Hitchcock, pelo facto de não ter no elenco os actores que queria.