Paraíso Infernal (1939)

 

 

Título original – Only Angels Have Wings

 

Howard Hawks sempre gostou de fazer “réplicas” de filmes feitos por outros, principalmente quando Hawks ou não gostava desses filmes (raros eram os casos) ou achava que conseguia fazer melhor (regra geral era assim). “Rio Bravo” (1959) responde a “High Noon” (1952; Hawks não gostou deste filme e foi sempre muito crítico a ele), “Hatari” (1962) responde a “Mogambo” (1953), “Bringing Up Baby” (1938) responde a “It Happened One Night” (1934), “A Song Is Born” (1948) responde a “Ball of Fire” (1941; aqui dá-se uma excepção, pois Hawks assina os dois filmes), “The Big Sleep” (1946) responde a “The Maltese Falcon” (1941), “To Have and Have Not” (1944) responde a “Casablanca” (1942). Sem dúvida que cada cinéfilo dá a sua preferência nestes “duelos”, mas também não há dúvidas que nos seus “remakes” Hawks faz Sempre Grande(ssíssimo) Cinema (e também O Seu Cinema).

“Red Dust” já tinha estreado (1932) e tinha mexido com o público.

O autor de “Rio Bravo” decide dar réplica, adequando-a à sua visão de Cinema e do mundo – cria peripécias de grupo, reúne um dos maiores leading men de sempre, pega em duas grandes beldades (e actrizes) e mostra muita tempestade (climatérica, humana, emocional).

Estes “anjos” vão mesmo voar?

 

Perante uma enorme tempestade, um grupo de aviadores-transportadores procura sobreviver e levar o seu trabalho em frente.

Geoff Carter lidera o grupo. Bonnie Lee é a menina que todos cativa.

Quando um novo piloto surge, e na companhia da esposa Judy, surge uma nova tempestade – de egos, de memórias, de relacionamentos e de paixões.

Esqueça-se o (péssimo) título português. Isto não é um filme de terror, suspense ou survival.

 

Agarremo-nos ao (lindíssimo) título inglês.

 

É, sim, um filme sobre anjos. Ou sobre humanos que tanto voam (pelas suas “asas”, capazes de voar, literalmente, por todas as adversidades – da Vida, da Natureza e da profissão), que tanto sacrificam, que tanta paixão entregam no seu trabalho, que são verdadeiros anjos. Mas a quem lhe faltam as asas. Sim, há as dos aviões que pilotam, mas até estas se queimam e partem.

É um filme sobre pessoas, sobre homens (e as mulheres que procuram pertencer entre/a eles), sobre profissionais perante o risco, sobre amores perdidos, queimaduras do coração, medos de laços e redescoberta do valor desses laços.

É um filme sobre a morte, da forma como ela persegue os envolvidos e como estes a ignoram – tanto ela, como os que ela leva.

É, afinal, um filme sobre a vida e viver. Sobre pessoas que nunca param de entregar o seu melhor a uma causa, a um modo de vida, a um trabalho, a uma equipa.

É todo o poder do Cinema de Howard Hawks, num conto sobre homens, relações, profissionalismo perante as adversidades, a imposição de uma mulher dentro daquele meio masculino e a forma como se afirma e mostrar merecer o lugar, guerra de sexos e confrontos entre mulheres pelo mesmo homem, amizade (ou verdadeiro amor) entre homens e a força daqueles diálogos tão reveladores de personalidades, emoções e relações que só Hawks sabia fazer.

É puro Cinema Hawksiano, tão facilmente visto e sentido em tantos, belos, divertidos, emotivos e icónicos momentos.

  • A forma como se ilustra, de forma rápida, os ambientes – um porto, zona latina, operários e mercadorias, o duo de gringos em busca de uma oportunidade e feitos conquistadores, a forma como Jean Arthur chama a atenção na dança, a forma como Arthur conquista os dois conquistadores. Estamos mesmo num mundo, mas num outro mundo que só o autor de “To Have and Have Not” sabia como criar. Um mundo onde muitos de nós desejariam encontrar e estar – pela diversão, pela união, pela solidariedade e amizade.
  • O duo a degladiar-se sobre qual ter a melhor line, quem criou qual, quem paga as bebidas. Puro exemplo da conduta do homem hawksiano e do fascínio da mulher hawksiana.
  • A entrada em cena de Cary Grant – postura de líder e desenrascado (ainda que sem lume, retira da mão de Arthur o cigarro para acender o seu). A manifestação do homem hawksiano.
  • O cuidado de Thomas Mitchell em colocar um casaco em Grant com o frio da noite. A força das relações e amizade do Cinema de Hawks.
  • O truque da moeda. Que bela forma de alguém mostrar que se preocupa e tem sentimentos, mas de uma forma que foge à lamechice. Puro Hawks, portanto.
  • A dinâmica do grupo (todo masculino), as conversas, os diálogos rápidos. Algo da essência humana do Cinema de Hawks.
  • A forma (táctica) como o grupo reage à morte de um deles. Para alguns espectadores cegos (ou só videntes de outros cinemas ditos… “emotivos”), será um exemplo de virilidade de indiferença sentimental. Mas no Cinema de Hawks, e neste filme em particular, é uma celebração constante de vida e o saber enfrentar a morte, mostrando com essa “indiferença” que ninguém morre naquele mundo e naquele grupo.
  • Arthur a deliciar todos quando começa a tocar piano (algo que Hawks fará parecido com Lauren Bacall em “To Have and Have Not” e “The Big Sleep”). O glamour da mulher hawksiana.
  • Arthur a explicar como a conquistar (“I`m hard to get, Geoff. All you have to do is ask me”) – o poder da boa escrita do Cinema hawksiano.
  • O bar do Dutchy parece antecipar o Rick`s Café de “Casablanca”, bem como o bar/hotel de “To Have and Have Not”. É um espaço pequeno, mas tão amplo de ponto de vista humano, de eventos e emoções. O Cinema de Hawks tem, frequentemente, um “quartel-general” para os heróis.
  • A conversa em que Arthur começa a amolecer Grant sobre o seu passado. Há que saber quando e como se conquista a confiança (aqui, de um homem, através de uma mulher). Algo da essência da relação homem-mulher, no Cinema de Hawks.
  • O cuidado de Grant em acender o fósforo no momento em que Mitchell quase perde a calma. Hawks é sempre atento a detalhes de objectos e atitudes que definem personagens, atitudes e relações.
  • A cena em que Grant descobre que Mitchell vê mal. Puro carinho entre dois homens. Algo habitual no Cinema de Hawks, mas é um sentimentalismo que não é mostrado de forma convencional.
  • A cena entre Grant, Hayworth e Arthur, no quarto dele – pura screwball hawksiana.
  • O momento da morte de um personagem relevante, que reforça o ilustrar da força da amizade entre ambos.
  • E aquele final – a confissão definitiva de um homem a uma mulher, com tanta subtileza, subterfúgio, distanciamento, desejo, carinho e amor. Um final que rima com o início, agora com a redenção, mas sempre com a união do grupo.

“Only Angels Have Wings” é também (ou acima de tudo) uma história de amor. Ou duas. Ou três. Ou quatro.

É de homens pela aviação.

É entre homem e mulher(es) – Grant & Arthur e Hayworth & Grant.

É entre homens (Grant & Mitchell).

É sobre a morte e dívidas.

Quem as tem não morre, e alguém que morre sem as ter.

É um filme sobre lágrimas.

Lágrimas derramadas por homens. Há um homem que chora (o plano das lágrimas e as gotas de chuva a cair pelo chapéu – um dos mais lindos planos de todo o Cinema), há lágrimas de amor de um homem pelo outro.

Mas calma.

Em plena era de “politicamente correcto” e “visão alargada” de algumas mentalidades do Século XXI, não faltará um “iluminado” qualquer que vai ver gayismos no filme.

 

Ora, o Cinema de Howard Hawks NÃO É (E NUNCA FOI) gay. Nem de forma subtil ou de outra.

É composto por histórias onde há amor puro entre pessoas, sem ambiguidades de condutas, orientações ou comportamentos.

(algo que muito do cinema de hoje não sabe o que é – talvez por isso tenha tão poucos angels e tão poucas wings).

Ou seja, é toda uma quintessência (ou, se calhar, A Quintessência) do Cinema de Howard Hawks, pegando em temas, ideias, eventos, personagens e cenários que ele desenvolveria e “imitaria”, por outras vias, em diversos títulos (“To Have and Have Not”, “His Girl Friday”, “Rio Bravo”, “El Dorado”, “Hatari”).

Cenografia minimalista (quase tudo se passa no bar, com poucas incursões ao escritório e quarto de Geoff, à pista de aterragem, ao controlo do pico do monte, ao interior dos aviões), mas com tantos personagens, tantos diálogos, tantos eventos.

 

Muito bons efeitos visuais, com miniature effects e matte paintings de grande nível.

Performances absolutamente perfeitas, de um elenco em estado de graça, magistralmente dirigido.

Cary Grant domina, com postura de líder e de veterano, mas com aquele charme sofisticado que só ele sabia, sempre “frio” (a forma como aborda com “indiferença” as meninas, a sua não-abertura sentimental), não se inibindo de fragilidades (o seu “choro” final).

Thomas Mitchell entrega delicadeza e dedicação (os diversos momentos com Grant).

Rita Hayworth arrancava aqui a sua carreira, já dá o seu habitual furacão de beleza e manipulação, ainda que aqui esteja menos “incendiária” que em títulos futuros (“Gilda”, “An Affair in Trinidad”, “The Lady from Shanghai”), mas já a prometer muito.

Jean Arthur está esplêndida, como a típica mulher do Cinema de Howard Hawks – forte, leal, emotiva, corajosa, capaz de integrar um meio masculino.

Howard Hawks em forma, a dirigir todos aqueles dramas e eventos como se fosse uma action/adventure (com algo de diferente face ao convencional do género –  a adventure está na luta contra as adversidades da Natureza, mas a action está na luta de duas mulheres por um homem), sem se inibir de contar várias  love stories (entre dois homens, perante o que os une e o que passaram pela vida, mas também entre homem e mulheres). E exímio na forma como filma a dinâmica de grupo (os planos com tantos personagens, onde ninguém está a mais; as festividades colectivas), a intimidade a dois ou individual (a atenção aos rostos), o espaço pequeno como se fosse um mundo (o bar parece pequeno para tanta gente, mas tão imenso para tantos eventos).

É o mais belo filme de Howard Hawks e um dos mais belos do Cinema.

O filme é um angel e está constantemente a bater as suas wings.

E voa para o paraíso (nada infernal, mas bem celestial) do Cinema e do coração do cinéfilo.

 

Obra-prima total.

Um verdadeiro must cinematográfico.

 

“Only Angels Have Wings” tem edição portuguesa, a bom preço.

A edição da Criterion Collection é rica em extras cinéfilos, mas paga-se.

Realizador: Howard Hawks

Argumentista(s): Jules Furthman, Howard Hawks (sem crédito, com a história “Plane from Barranca”), Eleanore Griffin (sem crédito), William Rankin (sem crédito)

Elenco: Cary Grant, Jean Arthur, Richard Barthelmess, Rita Hayworth, Thomas Mitchell, Richard Barthelmess, Noah Beery Jr.

 

Trailer

 

Clips

 

Os efeitos

 

Allan Arkush sobre o filme

 

O filme no TCM

 

Bilheteira – 1 milhão de Dólares

 

Nomeado para “Melhores Efeitos Especiais”, nos Oscars 1940. Perdeu para “The Rains Came”.

“Filme a Preservar”, pelo National Film Preservation Board 2017.

A base é um argumento de Anne Wigton, com o título “Plane No. 4”. Howard Hawks pegou nela e fez alterações, dando o título “Plane from Barranca”.

Enquanto filmava “Viva Villa!” (1934, realizado oficialmente por Jack Conway), Hawks ficou impressionado pela dedicação e empenho dos pilotos mexicanos. Tal serviu-lhe de inspiração para as suas ideias no argumento.

Hawks foi piloto de combate e líder de uma esquadrilha, durante a Primeira Guerra Mundial.

Jules Furthman foi chamado para elaborar o argumento final, ainda que Eleanore Griffin e William Rankin dessem uma ajuda.

Reencontro entre Howard Hawks e Cary Grant, depois de “Bringing Up Baby” (1938). Ainda fariam mais três filmes – “His Girl Friday” (1940), “I Was a Male War Bride” (1949) e “Monkey Business” (1952).

Richard Barthelmess tinha vincadas cicatrizes no rosto, resultado de umas infecções devido a uma cirurgia plástica. Apesar da oposição do estúdio, Hawks exigiu a escolha do actor, acreditando que as cicatrizes contariam parte da experiência de vida do personagem. Hawks também exigiu que as cicatrizes não fossem mascaradas pela maquilhagem.

Hawks chamou Jean Arthur, pois gostou de a ver em alguns filmes de Frank Capra.

Hawks escolheu Dorothy Comingore para Judy MacPherson e ainda ponderou Rochelle Hudson. Mas o boss do estúdio Columbia Pictures (Harry Cohn) insistiu numa rising star –Rita Hayworth. Hawks fez-lhe um screen test, gostou e chamou-a.

Rita Hayworth tem aqui o seu primeiro protagonismo.

Filmado por ordem sequencial, no Columbia Studio Ranch.

As Rocky Mountains americanas faziam dos Andes sul-americanos.

Houve muita filmagem da second unit, com cenas aéreas. Estas foram filmadas em diversos locais dos USA.

Hawks e Arthur tiveram muitas discussões criativas. Hawks queria que Arthur fosse a sua típica “mulher hawksiana“, mas a actriz não se sentia confortável com tal registo. Arthur não se sentia bem com a muita improvisação que Hawks colocava no set e não conseguia passar a imagem de mulher sexy que Hawks queria.

Quando Hayworth se mostrou incapaz de interpretar Judy bêbada, Hawks pediu a Grant para atirar a ela um balde de água, secar-lhe o cabelo e ser apenas o actor a dizer as lines.

Hayworth teve de refilmar umas cenas, com Charles Vidor a realizar (que a dirigiria no emblemático “Gilda”, em 1946).

As filmagens terminaram 31 dias depois do previsto.

No final das filmagens, Hawks pediu desculpa a Arthur, considerando que ele não a conseguiu ajudar, sendo um dos poucos casos de tal. Mas disse-lhe que ela um dia entenderia, pois ele iria continuar a criar o tipo de personagem que pretendia.

A morte de um personagem relevante é encenada de forma quase igual (incluindo os diálogos) a um evento que Hawks assistiu.

O filme estreou 12 dias depois de concluídas as refilmagens.

O filme foi um enorme sucesso (de público e crítica). Foi o terceiro maior do ano.

Howard Hawks vinha do flop (injusto) de “Bringing Up Baby” (1938) e precisava de um hit. Conseguiu-o.

Rita Hayworth ia bem lançada como movie star e até fez capa na “Look”.

Na estreia, algum crítico disse que este era o único filme de Howard Hawks que não tinha algo verdadeiro nele. Hawks respondeu e disse que muito do que se via no filme era real, verdadeiro e vindo de pessoas e eventos verídicos.

“Only Angels Have Wings” foi um de 12 filmes seleccionados como representantes do Cinema Americano, para o primeiro Festival de Cinema de Cannes, em 1939. O avanço da Segunda Guerra Mundial cancelou o evento.

 

Ao ver, anos depois, a performance de Lauren Bacall em “To Have and Have Not” (1944), Jean Arthur foi à casa de Howard Hawks e pediu-lhe desculpas pelo seu comportamento no set de “Only Angels Have Wings”. Arthur tinha percebido o conceito de Hawks para as suas mulheres e o seu estilo de direcção de actores.

Hawks disse que Arthur esteve bem no filme.

Em 1972, Jean Arthur revelaria o quanto se sentiu bem ao encostar a sua cabeça ao peito de Cary Grant.

Duas semanas depois da estreia, em Maio de 1939, o “Lux Radio Theatre” fazia uma versão radiofónica de uma hora. Cary Grant, Jean Arthur, Rita Hayworth, Richard Barthlemess e Thomas Mitchell retomaram os seus personagens.

 

Orson Welles fez a sua versão radiofónica, em Fevereiro de 1940, no “The Campbell Playhouse”. Welles e Joan Blondell protagonizavam.

 

“Calling Barranca” seria uma line habitual em muitos cartoons LooneyToons/Merrie Melodies.

É considerado como um dos melhores filmes de Howard Hawks.

“Only Angels Have Wings” é um filme decisivo para os críticos dos “Cahiers du Cinema” desenvolverem a sua teoria do auteur.

Está nos “1001 Movies You Must See Before You Die”, de Steven Schneider.

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