Título original – The Big Sleep
Dois anos depois do fabuloso “To Have and Have Not”, do (enorme) sucesso, dos (grandiosos) elogios, do (escaldante) encontro entre Bogart & Bacall, grande parte da equipa reúne-se.
Bogart & Bacall voltam a trocar insolências e sedução.
Howard Hawks volta a dar ordens.
Jules Furthman e William Faulkner voltam a escrever o argumento. Agora com a estimada ajuda de Leigh Bracket, uma Senhora que sabia escrever sobre homens, para homens e para Hawks.
Novamente à volta de um clássico da literatura – Raymond Chandler.
Philip Marlowe volta a ter mais um filme e o resultado é sublime.
Philip Marlowe, detective privado, é contratado pelo General Sternwood para resolver um caso de chantagem sobre as suas filhas.
Marlowe descobre um vasto e tenebroso negócio à base da pornografia, onde tudo vale e ninguém é poupado.
Film Noir é sobre estilo.
“The Big Sleep” (o filme) tem style que chegue para ele e para todos os filmes do género (feitos antes e depois, bem como para todos os que se farão até ao fim dos tempos).
As narrativas de Raymond Chandler são sempre sinuosas e complicadas, alicerçadas num protagonista íntegro, cínico, desencantado e paladino, sempre de língua afiada para a mais desarmante resposta.
“The Big Sleep” (o livro) é das tramas mais confusas do escritor e onde Philip Marlowe fala que se farta, arrumando todo o adversário com a sua “lábia”.
Howard Hawks pega na essência do livro de Chandler e na do género cinematográfico, e faz um autêntico manual que todos querem/devem seguir.
“The Big Sleep” (o filme) é O Film Noir dos Film Noir.
Muito se fala deste filme pela sua enorme complexidade narrativa, onde todos (os espectadores) se perdem.
Assim é, mas apenas nas primeiras visões.
A partir da quinta visão, acreditem que tudo fica mais claro e lógico.
E mesmo que assim não seja, parte do regozijo que o cinéfilo tem no filme é precisamente o de “apenas” seguir os passos de Marlowe e ver em que nova peripécia se vai meter dentro daquele labirinto de jogos, esquemas, traições, relações e seduções.
Depois vem o estilo.
Todo o cuidado visual é uma verdadeira palavra santa para o género.
A fotografia (bem noir), os contrastes (bem vincados), a forma como as roupas definem os personagens, os espaços interiores e exteriores (o luxo da mansão Sternwoood, a simplicidade do escritório de Marlowe, a elegância lúgubre da casa do chantagista, o isolamento tranquilo do refúgio de uma personagem desaparecida).
A violência é brutal e já antecipa o futuro do género nos 50s e 60s, com os novos herdeiros do género (Don Siegel, Robert Aldrich), mostrando o quanto Hawks era mesmo um “modernaço” face aos seus tempos.
Fiel a Chandler e a Hawks (agora com a escrita da sua fiel argumentista Leigh Brackett), o filme assenta muito em diálogos incisivos, que definem personalidades e relações (as de Marlowe com a Polícia, as de Marlowe com as manas Sternwood – principalmente com Vivian, onde o jogo de sedução e domínio é constante; as com Carmen são mais “paternalistas”, mas duras). Neste aspecto, o filme concilia o estilo de diálogos dos filmes Hawks/Brackett com os romances de Chandler. Algumas lines e diálogos são fiéis ao livro.
E depois há o tom firme, duro e noir constante, dasarmado aqui e ali por algum aburdo (a cena na primeira livraria), subtil erotismo (a cena na segunda livraria – a conversa e a atitude da menina) e muito atrevimento (a conversa sobre cavalos e cavalgadas, que é afinal sobre sexo e performance).
No “final” de tudo, a química (sempre explosiva) entre Humphrey Bogart & Lauren Bacall.
“To Have and Have Not” (1944) já tinha sido um ardente assobio.
“The Big Sleep” é uma sinfonia de ardências.
A forma como ambos trocam insolências, de forma a mostrar quem é mais forte e dominador, percebendo-se que cada um o que quer é mimo do outro, é pura e perfeita movie magic (apoiados na arte de bem-saber escrever diálogos) que vai para além do sublime.
Atenção a uma bem jovem e ardente Dorothy Malone – queremos conhecer uma funcionária de livraria assim tão “cooperante”.
A jovem Martha Vickers também merece destaque, com a sua perversa e excitante inocência.
O restante elenco é de igual excelência.
Bob Steele merece destaque como um temível hitman.
E toda a excelência se encontra também em todos os elementos técnicos.
Pouco interessa se “The Big Sleep” (o filme) é fiel ou segue à letra “The Big Sleep” (o livro). Hawks, Brackett, Faulkner e Furthman estão a fazer CINEMA e não a adaptar páginas de um livro ao ritmo de 24/25 frames per second.
Sim, o argumento segue a estrutura do romance de Chandler, mas deriva em certas partes. Não é uma questão de melhorar, é apenas fazer diferente (ainda que seguindo a matriz de Chandler), adequar aos tempos (a Censura não/nunca permitiria uma adaptação fiel) e ajustar aos protagonistas.
Uma liberdade criativa que se compreende e até agradece (pois funciona de forma celestial).
Termino como comecei:
“The Big Sleep” (o filme) é O Film Noir dos Film Noir.
Obra-prima absoluta, inimitável e inigualável.
Nada no Cinema e no género tem algo assim.
Uma verdadeira escola de Cinema de de Film Noir.
Absolutamente obrigatório.
“The Big Sleep” tem edição portuguesa e anda a preço já com “sono grande”. Pode ser uma raridade nas lojas. Diversas edições europeias têm legendas em Português, estando também a bom preço.
A edição americana contra com os dois cuts do filme (já explico melhor isso, mais abaixo), com um pertinente extra (as diferenças entre os dois cuts e o porquê deles). O preço anda igualmente “adormecido”.
Realizador: Howard Hawks
Argumentistas: William Faulkner, Leigh Brackett, Jules Furthman, a partir do romance de Raymond Chandler (“The Big Sleep”)
Elenco: Humphrey Bogart, Lauren Bacall, John Ridgely, Martha Vickers, Dorothy Malone, Peggy Knudsen, Regis Toomey, Charles Waldron, Charles D. Brown, Bob Steele, Elisha Cook Jr., Louis Jean Heydt, Sonia Darrin
Trailers
Clips
(onde se percebe o que é isso de… Style)
Orçamento – 250.000 Dólares
Mercado doméstico – 3 milhões de Dólares
Pre-release Version (1945) – 116 minutos
Theatrical Version (1946) – 114 minutos
“Filme a Preservar”, pelo National Film Preservation Board USA 1997.
“Hall of Fame”, pela Online Film & Television Association 2017.
Leigh Brackett e William Faulkner trabalharam em separado, adaptando diferentes partes do livro de Chandler. Terminaram o trabalho em oito dias.
Brackett e Faulkner tiveram dificuldade em resolver a morte de um personagem. Ligaram para Raymond Chandler para os ajudar. Duas versões existem sobre a reacção do escritor:
- Chandler deu conta que não deu solução a isso no livro e deixou liberdade criativa à dupla de argumentistas. O cut de 45 resolve o mistério, o cut de 46 não.
- Chandler disse que não sabia e que não queria saber.
O filme teve outro final pensado:
- Carmen tenta suicidar-se e descobre-se que foi ela que matou um personagem desaparecido. Marlowe decide salvá-la de um grupo de gangsters.
Mas o Production Code não permitia que alguém que cometeu um crime ficasse à solta. Deram uma ideia para um outro final (o que fica na montagem dos dois cuts). Hawks ficou tão bem impressionado pelos “censores”, que logo lhes ofereceu trabalho como argumentistas.
Perante a Censura da época, o filme não podia abordar certos temas perigosos – o ramo que visa a chantagem é a pornografia, Carmen é ninfomaníaca, dois personagens são homossexuais.
Nina Foch foi sondada para ser Carmen.
O editor do filme é Christian Nyby, habitual de Hawks. Nyby realizaria “The Thing”, produzido por Hawks, um dos mais relevantes terror sci-fi de sempre (refeito em 1982 por John Carpenter, “por acaso” grande fã de… Howard Hawks).
É o último filme de Charles Waldron.
Sonia Darrin não tem o seu nome no genérico, mas a sua personagem tem importância na narrativa. Devido a um conflito entre Jack L. Warner (o todo-o-poderoso do estúdio Warner Bros., o estúdio produtor do filme) e o agente da actriz, esta viu-se sem o nome creditado. Não foi eliminada da montagem, pois isso originaria complicações narrativas.
Dorothy Malone tinha 19 anos e estava em início de carreira.
Bogey tinha o hábito de cinco a seis bebidas ao almoço, o que enfurecia Hawks.
Surgiram rumores que Bacall fora dobrada quando cantava. Hawks provou que não. O mesmo aconteceu em “To Have and Have Not”.
Bacall divertia-se tanto no set, que Warner lhe enviou um memo a pedir-lhe que parasse.
Bogart tinha de estar em cima de uma estrutura para parecer mais alto que as meninas com quem contracena.
Curiosamento, Hawks (que descobriu Bacall para “To Have and Have Not”) nunca aprovou a relação entre Bogart & Bacall. O cineasta sentia-se como uma figura paternal.
O carro de Marlowe é um Plymouth DeLuxe, de 1938. Era o mesmo carro que Bogart usava em “High Sierra” (1941).
A cena de Marlowe na livraria de Geiger consta no livro de Chandler. Fica assim sem fundamento o boato que dizia que a cena foi uma ideia de Bogart. O que o actor fez foi a improvisação da sua representação.
A cena da conversa entre Marlowe e Vivian sobre cavalos foi adicionada em 1945. Pretendia-se o mesmo tipo de innuendo visto em “To Have and Have Not”.
Uma das cenas cortadas da versão de 45 foi aquela em que Marlowe explica à Polícia todos os eventos até então.
Os dois henchmen de Eddie Mars chamam-se Sidney e Pete – são uma homenagem a Sydney Greenstreet e Peter Lorre, habituais colegas de Bogart.
O tique de Marlowe coçar a orelha quando reflectia foi uma adenda de Bogart – ele tinha esse tique.
Hawks queria que todas as mulheres da história seduzissem Marlowe.
Hawks procurou que o filme assentasse em cenas que definiam personagens e relações e não se preocupou com a lógica dos eventos.
No cut de 45, a Mrs. Mars é interpretada por Pat Clark. No cut de 46, é interpretada por Peggy Knudsen (Clark não estava disponível).
O hall da mansão dos Sternwood seria usado em “Mildred Pierce” (1945).
Segundo de quatro filmes que Bogart & Bacall fizeram juntos – “To Have and Have Not” (1944, de Howard Hawks), “The Big Sleep” (1946, também de Hawks), “Dark Passage” (1947, de Delmer Daves) e “Key Largo” (1948, de John Huston).
É o filme que inicia a (longa) relação entre Hawks e Brackett. Antes de a conhecer, Hawks pensou que Brackett era um homem. Brackett escreveria “The Big Sleep” (1946), “Rio Bravo” (1959), “El Dorado” (1967), “Rio Lobo” (1970), “Hatari” (1962).
Chandler considerou que a interpretação de Martha Vickers eclipsava a de Lauren Bacall. Assim sendo, surge a necessidade de uma remontagem para que Martha tenha menos screen time face a Lauren.
As filmagens começaram em Outubro de 1944 e terminaram em Janeiro de 1945. Em Março de 45, Hawks tem o filme editado.
A Warner decide deixá-lo em stand by.
A Segunda Guerra Mundial estava no fim e o estúdio dá prioridade às estreias de filmes sobre o tema, pois corriam o risco de depois ficarem datados. O Film Noir ainda estava em alta e “The Big Sleep” não ficaria desactualizado.
“Confidential Agent” (1945) estreia e é arrasado nas críticas, principalmente a interpretação de Lauren Bacall. Charles K. Feldman (agente da actriz) convence Warner que Bacall não pode ter um novo azar.
“The Big Sleep” é visto e ambos concordam que o filme precisa de mais screen time a Bacall e mais cenas entre ela e Bogart, de preferência na onda das que ambos tiveram em “To Have and Have Not” (1944), que foram decisivas no sucesso (público e crítico) do filme.
Os argumentistas são chamados para escreverem novas cenas. Bogart & Bacall são chamados para filmarem nova footage. Ambos concordam, mas impõem que seja Hawks a filmá-las.
Philip Epstein (um dos argumentistas de “Casablanca”, de 1942) foi um dos argumentistas das novas cenas. A ele se deve a cena onde Marlowe e Vivian falam de cavalos.
Entre o início das filmagens e a rodagem das novas cenas, Bogart & Bacall casaram. Isto afectou a relação de ambos com Hawks, que nem queria filmar o conteúdo adicional. O casal queria Hawks e este exigiu a ausência de lamechices no set.
Em Janeiro de 1946 iniciam-se as filmagens das novas cenas. O filme estreia em Agosto de 1946. Muitos acharam que o novo cut era muito melhor que o anterior.
Não consigo dizer qual dos cuts é melhor.
Defino-os da seguinte forma:
- O cut de 1945 é uma adaptação de um romance de Raymond Chandler, realizado por Howard Hawks, com Humphrey Bogart & Lauren Bacall.
- O cut de 1946 é um filme com Humphrey Bogart & Lauren Bacall, realizado por Howard Hawks, a partir de um romance de Raymond Chandler.
A versão de 45 é “apenas” um (grandessíssimo) filme do género.
A versão de 46 mantém todas as virtudes da versão de 45, carregando bastante na química entre Bogart & Bacall, dando mais screen time entre os dois, enfatizando bem os sexual innuendos entre ambos.
A visão, back-to-back, dos dois cuts é um exercício cinéfilo muito estimulante.
Para quem nunca viu o filme, a versão de 45 ajuda, logo na primeira visão, a uma melhor compreensão da narrativa (a meio da metragem, Marlowe explica tudo o que se passou até então).
Está nos “Great Movies” de Roger Ebert.
Está nos “1001 Movies You Must See Before You Die”, de Steven Schneider.
O “American Film Institute” colocou Philip Marlowe na posição #32 dos maiores heróis do Cinema.
A “Empire” colocou “The Big Sleep” na sua colecção de obras-primas do Cinema.
A “Sight & Sound” colocou “The Big Sleep” entre os maiores filmes de sempre.
Em 1997 foi descoberto o cut inédito de 45, no arquivo da UCLA. Gerou logo imenso hype e logo se procurou o devido restauro e divulgação.
Sobre os actores que interpretaram Philip Marlowe:
As edições europeias sáo têm o cut de 46. Muitas edições europeias têm legendas em Português.
Só a edição americana conta com os dois cuts. Como extra, um documentário sobre as diferenças.
O filme seria alvo de um Remake (What?????). Foi em 1978. Michael Winner realiza. O filme é mais fiel ao livro (a relação de Marlowe com as manas Sternwood, mais explícito e aberto nas questões da sexualidade, final de acordo com o livro). Robert Mitchum é Philip Marlowe (fazendo bis ao personagem, depois de “Farewell, My Lovely”, de 1975), ao lado de um excelente elenco – James Stewart, Sarah Miles, Candy Clark, James Fox, Joan Collins, Oliver Reed, Richard Boone, James Donald, Harry Andrews). Não contou com aplausos de crítica ou público.
No filme “Micmacs” (2009), Jean-Pierre Jeunet faz referências ao cut de 45.
Raymond Chandler tem muitos dos seus romances editados em Portugal.
Aconteceu na “Colecção Vampiro” dos Livros do Brasil. Em formato de bolso (na colecção generalista) e depois em formato gigante (na colecção dedicada). Estas edições são uma raridade e só em alfarrabistas é que se podem encontrar.
Recentemente foi feita uma tentativa (bem tímida) de voltar a haver Chandler no nosso mercado livreiro. A Contraponto editou dois romances (“The Big Sleep” e “Lady in the Lake”), a Presença editou um (“The Long Goodbye”). E nada mais há e nada mais se sabe sobre continuidade de edições.
Segredos de “The Big Sleep” – o livro:
(ora vejam quem Raymond Chandler via mais parecido com Philip Marlowe)
https://www.signature-reads.com/2018/07/eight-things-didnt-know-raymond-chandler-big-sleep/
Sobre Raymond Chandler:
https://www.britannica.com/biography/Raymond-Chandler
https://www.biography.com/people/raymond-chandler-9244073
https://www.esquire.com/uk/culture/news/a6742/raymond-chandler-quotes/
https://www.brainpickings.org/2013/05/08/raymond-chandler-on-writing/
https://www.livrosdobrasil.pt/autor/raymond-chandler
http://www.detnovel.com/chandler.html
https://www.goodreads.com/author/show/1377.Raymond_Chandler
http://www.thrillingdetective.com/trivia/chandler.html