Serão as crianças os mais maldosos dos seres?
(e se tiverem a cumplicidade do “bom senso” de um adulto…)
Eis um fabuloso filme que pode responder a tal.
(e John Carpenter ainda não nos tinha levado à sua “Village of the Damned”)
Karen e Martha dirigem uma pequena escola. As coisas correm bem. Mas a birra de uma das alunas, Mary, vai levá-la a uma destrutiva vingança. Devido a uma mentira que distorce a verdade que viu (e ouviu), Karen e Martha vêem-se alvo do preconceito da comunidade. Isto porque se acredita que as duas amigas são… lésbicas.
Como repor a verdade?
“The Children`s Hour” já marca (muitos) pontos por ser um filme que aborda, com muita coragem e subtileza, o preconceito (e os seus efeitos devastadores), a perversidade infantil e um tema tabu (para a época) – a homossexualidade feminina.
O argumento é de uma admirável força humana e emocional, na forma como mostra as consequências (destruidoras de relações, sentimentos, reputações e empresariais) da mentira (ou suposta verdade), a exposição pública da intimidade, as falsas morais, os impuros pudores e a (tentativa) de limpeza de consciência.
Se há méritos (muitos) no argumento, a (excelente) realização do grande William Wyler não lhe fica atrás. Wyler dirige como se fosse um filme de suspense, sempre atento a detalhes (atenção à forma como se filmam rostos), com a câmara a ser “indiscreta” a filmar a verdade e a mentira, mas deixando lugar para a ambiguidade e o mistério, não se inibindo de surpreender com os devidos twists no timing certo.
Magníficas interpretações de Audrey Hepburn (já aqui se vê o seu jeitinho especial para com crianças – algo que seria vital para a sua futura missão como Embaixadora da UNICEF) e Shirley MacLaine, plenas de sentimento e raiva.
James Garner acompanha-as bem, com a sua simpatia habitual. Fay Bainter impecável, oscilando entre o patético, o comovente e o ultrajante. Veronica Cartwright (que veríamos dois anos depois em “The Birds”, de Hitchcock) cativa pela sua fragilidade. Impressionante é Karen Balkin, a compor o verdadeiro rosto da malvadez “inocente”.
Excelente trabalho de fotografia.
(atenção aos momentos nocturnos e em silêncio)
Doloroso, moral, intenso, perturbante, profundo, sentido e dilacerante.
“The Children`s Hour” está disponível em edição portuguesa e a bom preço.
Trailer
O decisivo e emotivo momento entre Audrey e Shirley
(a ver só por quem já conhece o filme)
O Filme
Uma análise
Esteve nomeado para “Melhor Actriz Secundária” (Fay Bainter) e para “Melhor Fotografia P&B”, nos Oscars 1962. Perdeu para, respectivamente, Rita Moreno (“West Side Story”) e “The Hustler”.
William Wyler esteve nomeado para “Melhor Realizador”, nos Globos de Ouro 1962. Perdeu para Stanley Kramer (“Judgment at Nuremberg”). Shirley MacLaine e Fay Bainter também estiveram nomeadas. Perderam para, respectivamente, Geraldine Page (“Summer and Smoke”) e Rita Moreno (“West Side Story”).
Wyler esteve nomeada para “Melhor Realização”, pelo Directors Guild of America USA 1962. Perdeu para Robert Wise (“West Side Story”).
“Melhor Actriz” (Shirley MacLaine), nos Prémios Laurel 1962.
O filme adapta uma peça de Lillian Hellman. Já tinha sofrido uma adaptação em 1936, com o título “These Three”. Também realizado por William Wyler, o filme conta com Miriam Hopkins, Merle Oberon e Joel McCrea. Na nova versão Hopkins interpreta a Tia da personagem de MacLaine. Oberon foi convidada para interpretar a avó da criança que despoleta a acção, mas recusou.
O argumento é assinado por John Michael Hayes, que procurou a maior fidelidade possível à obra de Hellman. Hayes é conhecido pela boa parceria que fez com Hitchcock (“Rear Window”, “The Man Who Knew Too Much”, “The Trouble With Harry”, “To Catch a Thief”).
A peça de Hellman estreou no Maxine Elliott’s Theatre em Novembro de 1934. Durou 691 representações.
Wyler teve de cortar algumas cenas que por temer que poderiam ser consideras explícitas sobre a sexualidade de uma das personagens. O tema da homossexualidade ainda era algo proibido pela Motion Picture Production Code.
Segundo Shirley MacLaine, durante as filmagens ninguém falava sobre o tema do filme ou das suas possíveis repercussões na indústria e na sociedade.
Fala-se que Katharine Hepburn chegou a ser ponderada como uma das protagonistas, mas foi recusada pela idade.
Doris Day foi considerada para ser uma das protagonistas.
É o último filme de Hepburn a P&B.
Reencontro de Hepburn e Wyler, depois de “Roman Holiday” (o filme que deu a Hepburn o Oscar de “Melhor Actriz”).
No filme surge a presença subtil de um livro, que tem maior relevo na peça de Hellman. É “Mademoiselle de Maupin”, de Théophile Gautier, um livro de 1835. Conta a história de uma mulher que se disfarça de homem e tem de lidar com a paixão de um homem e de uma mulher.
Sobre o livro
http://www.goodreads.com/book/show/253878.Mademoiselle_de_Maupin
O título (original) vem de um poema de Henry Wadsworth Longfellow.
O poema – http://www.poetryfoundation.org/poem/173894
Sobre Lillian Hellman – http://www.kirjasto.sci.fi/lhellman.htm
“The Celluloid Closet”
Um excelente documentário sobre a (homos)sexualidade no Cinema